A Vontade de Potência
Os cinquenta anos do golpe militar de 1964 vem suscitando a edição de muitos livros enfocando a repressão promovida pelos generais ditadores ou a heroica resistência à esquerda àquela onde de terror que tingiu de sangue o Brasil por 21 longos anos. São estudos localizados dentro de um recorte temporal identificado pela historiografia como História do Tempo Presente, em geral, começando pelos antecedentes do golpe: a eleição/renúncia de Jânio Quadros e a euforia das reformas de base no ambíguo governo de João Goulart. Em seguida, adentraram ao golpe, enveredando, então, por caminhos que levaram à repressão ou à resistência.
Uma das exceções dentro do "boom" editorial centrado no golpe militar é o livro A Vontade de Potência, do antropólogo, cientista político e advogado, Orlando Sampaio Silva, editado pela Chiado, Editora portuguesa. Não somente o título do livro como também a construção da narrativa se apropriam do conceito de Schopenhauer, ampliado por Nietzsche, para mostrar que a vontade de poder dos militares brasileiros é uma vontade insaciável, algo que estria além dos sentidos, mas dentro de relações de tensão permanente, às vezes, dedicada, às vezes, violenta.
O que o difere dos demais títulos recentemente publicados é o seu longo recorte histórico. Ele parte do final do Segundo Império para mostrar o emprenho dos militares pela conquista do poder civil, até chegar à conquista efetiva, em 1964, com apoio das armas. E 373 páginas, o autor seleciona eventos que reconstroem uma história política dos militares, entre os quais, a Primeira República e os movimentos militares da década de 1920, o Tenentismo, o Levante dos 18 do Forte, a Comuna de Manaus em 1924, a Segunda República, com destaque à resistência oligárquica paulista na Revolução Constitucionalista de 1932 (a Constitucionalista na Amazônia, estudada por mim, parece-lhe desconhecida), a "Intentona Comunista", o Estado Novo, o Brasil na Segunda Guerra, o curto período democrático, do fim da ditadura Vargas ao governo do Jango; os Anos de Chumbo, da ditadura militar de 1964 aos movimentos pelas Diretas Já e pela Anistia.
Uma das mais interessantes contribuições do livro é a análise que faz, no capítulo II, sobre a natureza do militar brasileiro, especificamente com objetivo de desvendar o que seria uma identidade coletiva militar e de compreender, como anuncia, "o ser militar enquanto ser", desvelando antagonismos revelados em vários daqueles eventos. É o momento em que o autor trata de questões como hierarquia, disciplina, o ser ou ente militar, questões de formação, dicotomias ideológicas e oposição binária civis/militares. É raro um estudo sociológico sobre a ditadura militar que, para além de questões envolvendo a repressão ou os avanços e retrocessos da época, se propões a estudar o militar, para entendê-lo "como ser, sem uma visão pré-concebida, sem querer condená-lo", pois enfoca-o como dirigente da sociedade brasileira, previsto na Constituição. Antes que um juízo desavisado de forme, já que se dizer que Orlando Sampaio Silva sofreu na mão da ditadura, tendo sido um dos cinco professores da Universidade Federal do Pará aposentados pelo AI 5. Em 1969, ele era professor de Antropologia Brasileira.
Sobre os 21 anos da ditadura militar, Orlando Sampaio mostra um governo cingido por duas correntes, a "linha dura", dos generais Costa e Silva e Médice, e a "linha não tão dura", de Castelo Branco, Geisel e Figueiredo. Ambas, porém, cassaram mandatos, fecharam o Congresso e torturaram civis. A diferença entre elas é que a segunda tinha o projeto de devolver o poder aos civis, após a eliminação da "presença de comunistas nas funções públicas" e o fim da chamada "República sindicalista". Em comum entre as correntes, estava o fato de os militares, por natureza, autoritários, se considerarem capacitados e competentes para administrar o poder, pois achavam que os civis eram incultos e facilmente manipuláveis pelos comunistas.
Escrito por um acadêmico, "A Vontade de Potência" não é um trabalho propriamente de cunho acadêmico, sua análise sobre a identidade militar, por exemplo, foge ao cânone historiográfico, não se inserindo nas duas concepções que explicam o papel da organização militar: a instrumental, que vê o Exército como instrumento dos desígnios de determinadas classes sociais, e a organizacional, que analisa o comportamento do Exército a partir da análise de sua organização interna, o que inclui observação sobre suas dissensões. Trata-se, portanto, de um livro autoral, de memória a testemunho, livre de qualquer amarra acadêmica.
Walter Pinto - Mestre em História Social da Amazônia, Jornalista da Assessoria de Comunicação Institucional da UFPA.
Entre em contato com o autor; osavlis@gmail.com
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