Doce ilusão de um desiludido

Viva a sua vida

Lembro-me de você. Era uma criança linda em todos os sentidos. Amava seus pais, respeitava-os com dedicação. Procurava atender aos desejos deles. Queria-os bem e eles a você.

Você brincava com os personagens da sua imaginação. Mantinha-os por perto, porque eles eram seus amigos verdadeiros. Você cresceu um pouco, foi para a escolinha, teve amigos de carne e osso, que as vezes confrontavam as ideias deles com as suas, que eram diferentes. Foi a partir dessa convivência que você começou a perceber as diferenças entre as pessoas. Por isso, começou a criar o seu próprio mundo, começou a fortalecer ainda mais o seu universo de imaginação, que era mais feliz do que o mundo das pessoas de carne e osso, porque esse mundo de pessoas de carne e osso é dolorido, já que todos desejam tudo e tudo não pode ser de todos, porque o tudo sempre acaba e todos ficam sem nada. 

Lembro-me também que você foi crescendo, conhecendo mais coisas e lugares e mais pessoas. As coisas pareciam diferentes, mas com o tempo passaram a ser iguais. Os lugares também. As pessoas, essas eram diferentes por fora, só que, por dentro, eram muito parecidas. Algumas eram parecidas com você, outras muito diferentes mesmo. Você não gostava das pessoas diferentes, porque tinha que explicar o seu mundo a elas e muitas não entendiam e outras não estavam dispostas nem a escutar. Por isso você foi se afastando, até mesmo daquelas que lhe pareciam iguais, porque com o tempo elas foram se modificando e você também se modificou, então, seu mundo de imaginação também se modificava, mas não se afastava de você. Novos personagens nasceram nesse mundo, outros você mudou de lugar, só que ainda estão lá, escondidos atrás de uma pedra, ou dentro de uma caverna secreta.

Você cresceu mais, seus pais envelheceram, tudo mudava o tempo todo. Muitas coisas foram aparecendo na sua vida, até as garotas. Você não sabia, mas elas buscavam em você o mesmo que você buscava nelas. Acho mesmo que ninguém sabia o que buscar, porque não conheciam nada, foram conhecer bem depois de velhos. Até mesmo depois de velhos ainda não sabem o que buscar. Você passou por tantas situações que exigiram de você providências imediatas, que tiveram que brotar na sua mente para resolver o que apareceu. Foi difícil, só que com isso, aprendeu que quase tudo pode ser resolvido, de um jeito ou de outro. Aprendeu também que muitas coisas se resolvem sozinhas e que não é preciso se desesperar com todos os problemas que aparecem. O que você mais registrou na sua vida, foi que você não conseguirá resolver o problema do mundo. Hoje você sabe que se resolver os seus problemas, já terá feito bastante coisa. 

Sua vida foi intensa. Teve muitas risadas, choros, comoções, alegrias, dores, pavores e tantas emoções diferentes que você nem sabe se ainda sente algo em relação as pessoas, as coisas e os lugares. Para você o mundo agora só tem uma nota musical e uma única cor. Você me disse que está tão chato viver, porque essa paisagem não muda. Nada te deixa feliz e você não me contou o que te feriu tanto que fez apagar a sua chama de vida. Conte-me um dia, antes de morrer. 

Eu me lembro daquele seu carrinho prata que ganhou quando era criança. O carrinho era de metal, tão bonito, com rodinhas pretas, portas que se abriam. Tinha bancos, painel, volante e até escapamento. Logo você se imaginou dirigindo a toda velocidade pela estrada que construiu na sua imaginação de criança empolgada com o brinquedo novo. Sei que você pensou que se aquela estrada existisse de verdade, você poderia dirigir seu carrinho por ela igual fez quando imaginou isso na época em que era criança. Penso que seu coração não petrificou por dentro, só por fora. Criou-se uma crosta em volta do seu coração, por isso você não sente mais a alegria da vida e deseja morrer. Eu sei que isso tem a ver com o fato de pedirem para você mais do que você pode oferecer e como você não sabe falar não, vive a sofrer com suas atitudes altruístas que só prejudicam a sua vida. O que te falta é mais firmeza, mais violência com os outros, porque você agride a si mesmo quando concorda em realizar a vontade dos outros e deixa as suas de lado. Talvez isso tenha feito de você um morto vivo. 

Desculpe-me, não vim aqui para lhe magoar. Vim para te ver, só que falo tudo isso, porque gostaria de despertar em você a vida, porque eu sei o que estou falando, eu tenho experiência. Eu não sou louco, eu conheço o mundo mais do que você, porque vivi mais do que você. 

Lembro-me dos seus pais que já morreram. Eu sei que não sou seu pai, sei que meus filhos não são seus irmãos, mas eu gostaria de ser seu pai e gostaria que meus filhos fossem seus irmãos. O fato é que não lhe perguntei se você gostaria disso, cheguei e coloquei essas cartas sobre a mesa sem perguntar nada. Imagino que você não quer ser meu filho, afinal você teve um pai, além disso, você me trata mal, mas a culpa de me tratar mal é sua e não minha, porque eu estou aqui para fazer o bem a você, só que você não me deixar fazer o bem, você não me escuta, quer fazer todas as coisas que estão na sua cabeça e não ouve as coisas que estão na minha cabeça. Você é egoísta.