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Polícia e Direitos Humanos [ por Cel. Luiz Eduardo Pesce de Arruda ]

Palácio do Governo 2010 Yuri Abyaza Costa e Cel. Arruda


Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP/Marília Ano 2013 – Edição 12 – Novembro/2013 ISSN 1983-2192.

POLÍCIA E DIREITOS HUMANOS: A RESPONSABILIDADE DAS ESCOLAS

Uma análise cotejada com Theodor Adorno

ARRUDA, Luiz Eduardo Pesce de 1

Resumo: O presente artigo analisa a formação policial, com ênfase nas escolas policiais militares do Brasil, à luz da teoria formulada por Theodor Adorno em seu artigo clássico “Educação após Auschwitz”. Ressalta que o uso de força letal pela polícia é muitas vezes legitimado por governantes, políticos e pela mídia, mas se constitui, em paradoxo, no principal argumento invocado pelos defensores da desmilitarização as instituições policiais. Trata dos processos seletivos e da complexa mudança de conduta que se impõe à Escola que, em curto prazo, precisa transformar o quase adolescente, com valores adquiridos em sua família e sua comunidade e norteados pelo senso comum, em autoridade pública. Fala sobre a arquitetura das escolas policiais, o ambiente de formação, a necessidade da eliminação de símbolos bélicos e sua substituição por símbolos que exaltem o serviço, a defesa da vida, da integridade física e da dignidade das pessoas. Aborda a necessidade de reforçar no aluno a coragem para opor-se a ordens manifestamente ilegais, que violem direitos humanos fundamentais, o que se obtém pelo respeito e preservação da dignidade do aluno e de seus direitos e pelo repúdio dos formadores à despersonalização do instruendo, a perda da própria identidade e a submissão do aluno a humilhações e constrangimentos. Aborda a necessidade de mudanças nos currículos de formação, focando-o nas ciências humanas, no cuidado da vítima, na compreensão do universo do adolescente e jovem adulto em conflito com a lei e na abordagem transversal e prevalente dos direitos humanos. Defende a reformulação do corpo docente das escolas de polícia, reduzindo a endogenia e estimulando a pluralidade, como corolário de que a sociedade é marcada pelas contradições e pela diversidade. Reflete sobre a tecnologia e a necessidade de fazer dela uma ferramenta, e não finalidade em si mesma. Trata do cuidado com a integridade física e psicológica do aluno, da progressividade do ensino e, por derradeiro, da nobreza da missão de formar policiais, orientando sua vocação, seus talentos e inteligência a serviço da vida. 

Palavras-chave: polícia, Adorno, direitos humanos, formação policial, desmilitarização.

1 Luiz Eduardo Pesce de Arruda é professor universitário, Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo CAES/PM, coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, especialista em liberdades públicas e segurança interior (École Nationale d’Administration– ENA – Paris). Comandou a Escola Superior de Soldados e foi Diretor de Ensino e Cultura da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

POLÍCIA E DIREITOS HUMANOS: A RESPONSABILIDADE DAS ESCOLAS.

Uma análise cotejada com Theodor Adorno

Abstract: This article examines police training, with emphasis on Polícia Militar schools in Brazil, in the light of the theory formulated by Theodor Adorno in his classic article "Education after Auschwitz". Emphasizes that the use of lethal force by the police is often legitimized by governments , politicians and the media, but is, paradoxically , the main argument put forward by defenders of demilitarization police institutions. It 's selection processes and complex change of conduct that requires the school that in the short term, need to transform the almost adolescent, with values acquired in his family and his community and guided by common sense, a public authority. Talks about the architecture of the police schools, the training environment, eliminating the need warlike symbols and replacing it with symbols that exalt the service, the defense of life , physical integrity and dignity of people. Addresses the need to reinforce in the student the courage to oppose manifestly illegal orders that violate fundamental human rights, which is obtained by respect and preserve the dignity of the student and his rights and the rejection of trainers to the depersonalization of the trainee, the loss of identity and submission of the student to humiliation and embarrassment. Addresses the need for changes in training curricula, focusing on the social sciences, in the care of the victim, in understanding the universe of teenagers and young adults in conflict with the law and in the transverse and prevalent human rights approach .Advocates recast faculty of police schools, reducing inbreeding and encouraging plurality, as a corollary that society is marked by contradictions and diversity. Reflects on the technology and the need to make it a tool, not an end in itself. Comes to the care of the physical and psychological integrity of the student, the progressivity of teaching and, last, the nobility of the mission to train policemen , directing his vocation , his talents and intelligence at the service of life. Key-words: police, Adorno, human rights, police training, demilitarization.

Há décadas, o Brasil assiste a um empenho ativista de alguns segmentos da sociedade para que se desmilitarize as polícias militares. Paradoxalmente, a despeito do modelo das PM ser sobejamente reconhecido como muito mais produtivo operacionalmente, mais confiável sistemicamente e mais infenso à corrupção estrutural, sucessivas manifestações, oriundas de foros diversos, pleiteiam retirar dessas instituições quase bicentenárias o seu status de forças militares estaduais, vocacionadas à proteção das pessoas e ao serviço à comunidade. Alguns dos críticos, o fazem por coerência ao modelo adotado por suas próprias instituições policiais ou suas corporações, surgidas mais recentemente, que dividem espaço de poder com as Polícias Militares e utilizam esse argumento no intuito de reduzir o poder das polícias fardadas no compartilhamento dos espaços Revista LEVS/UNESP-Marília | Ano 2013 – Edição 12- Novembro/2013 – ISSN 1983-2192

No cenário da segurança pública.

Além das razões já expostas, motivos diversos impelem os defensores da desmilitarização. Alguns por convicção pessoal calcada em uma visão ideológica civilista como os que, influenciados pelo modelo anglo-saxão de polícia. Outros acusadores do modelo policial militar, por razões ideológicas menores, o fazem sem levar em conta o interesse da nação e da sociedade. Quaisquer que sejam os motivos que possam invocar os defensores da desmilitarização, o fato notável é que raramente se anotam manifestações em contrário, qual seja, expandir o modelo de policias de estética militar às demais instituições policiais o que, ao menos no livre pensar inerente ao âmbito acadêmico, seria plenamente sustentável. Um dos argumentos que melhor se presta a legitimar, perante a opinião pública, defendidos pelos críticos do modelo policial militar é afirmar que a PM mata demais. Nesse diapasão, invocam que, só em São Paulo, 20% de eventos com resultado morte decorrem de intervenções policiais. Em outras unidades federativas, apontam que, por vezes, nem mesmo se contabilizam para difusão pública tais índices, como afirmou Oscar Vilhena Vieira (2013) em recente artigo jornalístico. Nenhum argumento alimenta mais os críticos das Policias Militares que a prática, com incômoda recorrência, de atos de barbárie praticados por membros da Instituição, em flagrante violação aos direitos humanos, especialmente os que desaguam em resultados letais de inocentes confundidos com delinquentes (inclusive por supostos disparos acidentais), execução de presos sob guarda da polícia ou, ainda mais grave, vítimas fatais da prática de tortura levada a efeito em dependências policiais. Desvios de conduta dessa natureza ocorrem com indesejável frequência no Brasil e não constituem privilégio de uma única instituição policial (ou guarda municipal) em particular. O mesmo se aplica a desvios na formação, que ocorrem em graus diferentes segundo a época, a direção da organização de segurança pública ou a visão ideológica dos governantes. Fato infelizmente não raro é identificarmos governadores e secretários de segurança que, por seus discursos e posturas, aparentam legitimar excessos praticados pela polícia em nome de que “direitos humanos são para humanos direitos”. Esses discursos rasos e irresponsáveis, de grande apelo popular, alcançam sucesso, por exemplo, ao conferir-se o uso de idêntica linguagem por apresentadores de programas policiais de rádio e TV de grande audiência ou pela expressiva votação obtida nas urnas por policiais cuja imagem se associa à da repressão policial pelo recurso à força letal.
Entretanto, dada a delimitação proposta neste artigo, as questões de formação policial irão focar, especialmente, a atividade envolvida no âmbito do ensino policial-militar embora, como dito acima, grande parte das assertivas se apliquem perfeitamente – e por vezes até com maior precisão – a outras instituições. A primeira barreira que se impõe à contenção da barbárie é a realização de bons processos seletivos, dispensando aquelas pessoas que apresentam traços de personalidade não compatíveis com o equilíbrio e a maturidade indispensáveis ao correto exercício da missão policial. Normalmente, opções por quantidade e não pela qualidade dos candidatos, que possam gerar resultados eleitorais imediatistas, e que levam ao relaxamento dos padrões de excelência exigidos para ingresso de novos membros na força policial, conduzem à abertura de perigosas brechas, pelas quais poderão ser admitidas pessoas ansiosas, imaturas ou com transtornos de comportamento que estarão mais propensas à prática dos atos reprováveis, que os detratores das polícias militares repetidamente elencam para sustentar suas premissas.
A uma seleção acurada, faz-se necessária complementar pela realização de cuidadosa formação. O jovem, recém-saído da adolescência, normalmente originário dos segmentos socioeconômicos menos privilegiados da sociedade, morador da periferia, ontem exposto aos dilemas de um cotidiano de violência, à glamorização de traficantes e à falta de credibilidade no Estado ausente, terá poucos meses para transformar-se numa autoridade, moldada para compor com isenção os graves conflitos e defender a lei, repudiar atos de corrupção e suportar a intensa pressão de uma sociedade desassistida, que nele reconhece a única autoridade visível ao alcance de suas queixas. Ao menino de ontem é exigido pela sociedade, em cerca de um ano, que venha a comportar-se como figura pública, responder com civilidade aos dilemas da missão policial e, mais que determinar sua própria conduta pelos limites da legalidade, ser instado a acreditar sinceramente, defender e promover os direitos humanos, mesmo em ambientes hostis e a despeito de estar exposto a alto risco pessoal e à ineficiência de outros atores do sistema de persecução criminal. Estimulá-lo a interagir com as pessoas às quais serve e protege, fundando sua conduta na crença na prevalência dos direitos humanos, é a grande lição para prevenir que seja cooptado à prática do que o saudoso coronel PM Hermes Bittencourt Cruz chamava de “violência preventiva”, qual seja, em ambientes onde o policial se vê em risco, por não compreender o ordenamento arquitetônico, as relações sociais e não conhecer o perfil e os antecedentes dos moradores, todos, a priori, são suspeitos.
Em um ambiente que lhe pareça de tal modo hostil, o policial, acossado pelo temor de ser agredido a partir de qualquer ponto geográfico e por qualquer pessoa, decide encarar a todos, a priori, como inimigos e a decidir-se por atacar primeiro, antes que seja atacado, como regra de sobrevivência na qual acredita e cujos resultados são, via de regra, catastróficos. Eis a grande responsabilidade, o desafio e o compromisso dos responsáveis pelas escolas de formação de policiais e, por extensão, daqueles que trabalham com o jovem policial recém-saído da escola de formação. Todos formadores, cabe-lhes exercitar o dom de fazer o jovem adulto, no dizer de Paulo apóstolo, “desvestir-se do homem velho para revestir-se com as vestes do homem novo”2.
A responsabilidade é dos agentes, mas é, antes de tudo, do Estado, que tem o compromisso moral de atender com seriedade ao enorme desafio da formação dos quadros policiais que corporificam, no cotidiano, o próprio ente político cuja estabilidade, ordem e tranquilidade defendem. Essa responsabilidade do Estado com a formação de seus futuros policiais se manifesta, inicialmente, por uma instalação física adequada. A arquitetura se compõe de mensagens que promovem comportamentos, revelando-se uma forma de comunicação não verbal, conforme argumenta Corrêa (2005).
Instituições policiais que se vocacionem à grandeza da missão, preservando a Carta de são Paulo aos Efésios, 4,24. alma espartana e seu compromisso de serviço, devem contar com escolas que, desde seu projeto arquitetônico, expressem grandiosidade, ausente o luxo que enfraquece a alma e ofende o contribuinte e se desenhem acolhedoras, abertas ao serviço à comunidade. Portanto, como formar policiais em instalações improvisadas, medíocres, sujas, quebradas, desconfortáveis? Em salas de aula que não respeitam a ergonomia, sem infra estrutura? Em escolas que são verdadeiras ilhas fortificadas, onde a comunidade não frequenta, nem tem acesso ou pode partilhar o usufruto de instalações de interesses comum, como bibliotecas, infocentros ou instalações desportivas? Em ambientes conturbados, onde não haja paz ou privacidade, que não faculte ao aluno desfrutar do binômio silêncio e palavra, “...dois momentos da comunicação que se devem equilibrar, alternar e integrar entre si para se obter um diálogo autêntico e uma união profunda entre as pessoas”, ao qual se referiu Bento XVI?
O ambiente de uma escola de formação policial é profundamente simbólico, onde cada objeto, conforme afirma Jung (s/d), significa algo além de sua aparência imediata e manifesta. Por isso, o grande cuidado com a disposição dos elementos visuais na escola. É imprescindível a abolição de símbolos bélicos, que louvem a letalidade, glamourizem a morte, edulcorem a guerra ou seus instrumentos (fuzil, faca na caveira etc.), como contribuição ao necessário controle do ambiente escolar. Especialmente, símbolos de animais agressivos, comparados a alunos policiais (“Companhia Tigre”, “Cobra”, “Pitbull” e outras associações infelizes do gênero) devem ser banidos das escolas policiais. Abolir símbolos agressivos também se aplica aos gritos de guerra, e a frases repetidas pelos alunos em instrução, por exemplo, ao desfilarem ou ao deslocarem-se, correndo, em formação. As polícias militares possuem uma rica tradição musical, que remonta à Guerra do Paraguai, e não necessitam, por um processo de assimilação cultural, aproveitarem canções que exaltem a guerra, o enfrentamento, o combate ao inimigo, peculiares à missão das Forças Armadas. As canções executadas nas escolas de polícia precisam, sim, refletir o compromisso de defesa da vida, da integridade física e da proteção à dignidade das pessoas. Recorrer a hinários próprios pode significar um reforço aos valores que a Escola se propõe a introjetar no formando.
E não bastam instalações dotadas de adequada infra estrutura e um ambiente favorável à transformação de quase adolescentes em autoridades comprometidas em proteger e servir as pessoas. Os docentes, selecionados criteriosamente, exclusivamente por mérito, devem expressar-se e vestir-se de modo condigno ao ambiente escolar, como manifestação e respeito aos alunos. Integrada por alunos oriundos de realidades socioeconômicas as mais díspares, a escola cumpre o importante papel de nivelar seus discentes, fazendo-os compreender que, a partir de sua aprovação no processo seletivo, preparam-se, agora, para exercer funções de elevada responsabilidade pública, que deles exigirá distinção e discrição. As instalações físicas devem refletir essa visão de mundo, oferecendo aos alunos espaços condizentes à nobreza do cargo que se preparam para ocupar. Alunos formados em instalações adequadas levam essa ânsia de conviver em ambientes salubres por toda a carreira e buscarão, por todos os meios, melhorar as instalações das Unidades operacionais ou administrativas aonde vierem a servir no futuro. Dignidade, na formação policial, também se expressa na qualidade da alimentação e no espaço sóbrio aonde alunos irão se alimentar. Dessa maneira, as relações internas cuidadosamente cultivadas entre instrutores e instruendos, e desenvolvidas em um ambiente propício, sem dúvida trarão reflexos externos duradouros, posto que as lições, formais e informais aprendidas na escola de polícia, impregnarão de tal modo as almas dos jovens em processo formativo que jamais se esquecerão desses dias, ao longo de toda vida, norteando-se por tais experiências, especialmente nos momentos de dilema.
Theodor Adorno (2003), ao tratar da educação após Auschwitz no texto que utilizamos como bússola deste artigo, buscou compreender o que poderia ter levado pessoas aparentemente comuns à prática da barbárie. Ao apresentar suas conclusões, Adorno destacou com grande peso a formação escolar a que essas pessoas foram submetidas, lançando luzes sobre o que chamou de coisificação da consciência, segundo ele, fruto de um ambiente que produz um clima intelectual, cultural e social propenso a essa deformação. 

“Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos” – ponderou Adorno – “convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres auto determinados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa”.

Nesse diapasão, a despersonalização do aluno, a perda da própria identidade, a submissão do aluno a humilhações e constrangimentos de todo gênero colaboram para fazer com que o futuro profissional transfira às pessoas nas quais reconhece autoridade a responsabilidade pelo julgamento ético do ato que praticará.

“-Eu não sou nada, meu superior é tudo, faço tudo o que ele me mandar fazer”, conclui. 

Isso talvez explique o recurso da defesa, desde o julgamento de Nuremberg, até Eichmann ou o julgamento dos militares argentinos acusados da prática de graves violações de direitos humanos, à chamada “obediência devida”, ou seja, “apenas cumpri aquilo que me mandaram fazer”. Ensinar o aluno a resistir ao cumprimento de ordens manifestamente ilegais, ainda que emanadas de autoridades legítimas e mesmo que em circunstanciais excepcionais, tais como “o estado de guerra ou ameaça à segurança nacional, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública”3, posto violarem direitos humanos, é o primeiro grande desafio da Escola de Formação de policiais. Não é fácil resistir ao cumprimento de ordens, mesmo as mais absurdas. A experiência levada a efeito por Milgran (1983), por exemplo, ao pretender inquirir de que forma é que os indivíduos observados tenderiam a obedecer às autoridades, mesmo que estas ordens violassem o mais comezinho bom-senso individual, deixou evidente que pessoas são capazes de praticar atrocidades quando reconhecem que as ordens emanam de pessoa na qual reconhecem autoridade e que delas cobra coerência (“-você aceitou participar voluntariamente, agora cumpra o combinado!”).
E não se trata simplesmente de resistir ao cumprimento de ordens que remetam à barbárie. Trata-se de desenvolver nos alunos a auto estima e a coragem moral de enfrentarem o grupo, sustentando valores maiores, posto estarem marcados a fogo na própria alma do policial bem formado. Dispõe o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, em seu artigo 8.º (1979), que tais servidores “devem informar das violações os seus superiores hierárquicos e tomar medidas legítimas, sem respeitar a via hierárquica somente quando não houver outros meios disponíveis ou eficazes. Subentende-se que os funcionários responsáveis pela aplicação da lei não devem sofrer sanções administrativas ou de outra natureza pelo fato de terem comunicado que se produziu ou que está prestes a produzir-se uma violação deste Código” 4.
Em suma, a escola deve instrumentalizar o policial, emocional e tecnicamente, a manter sua capacidade crítica para cumprir a lei e escolher, sempre, por convicção, proteger os mais vulneráveis. Uma estratégia importante nesse sentido é repudiar a endogenia, o corpo docente composto exclusivamente por profissionais da Instituição, a linguagem padronizada, a visão de mundo acabada e unilateral, a simplificação da realidade, o senso comum substituindo a investigação científica, o “magister dixit” ao invés da livre investigação científica, o ensino apostilado que se limita a mostrar a realidade como se fosse linear e não multifacetada. É preciso selecionar docentes externos à instituição, honestos intelectualmente, comprometidos com a mesma ética e com os mesmos valores que a Instituição defende, mas não necessariamente isentos de críticas às condutas adotadas por membros da Instituição, capazes de expressar ao aluno as contradições da própria sociedade, que estimulem o debate, que ensinem o aluno a lidar com opiniões diversas das suas, a manter a serenidade em face de provocações verbais. Afinal, é no ambiente controlado da escola que se ensinará o policial a, no futuro, lidar com adolescentes questionadores, por vezes desrespeitosos, como é peculiar dessa fase da vida dos jovens, em ambientes não controlados, que são as ruas. Se o policial estiver apto a lidar com contradições e com o debate, a ser tolerante em face de opiniões diversas da sua, certamente estará capacitado a sustentar verbalmente o dissídio. Senão, contrariado em sua autoridade, que ele pressupõe inquestionável, iniciará a escalada da violência pelo recurso à força física, para calar o opositor que o questiona, do que resulta, por vezes, tragédias como a que vitimou, em abril de 2010, o motoboy Eduardo Luiz Pinheiro dos Santos, morto depois de ser abordado por policiais militares e levado para uma companhia da PM, no bairro da Casa Verde, na Capital, onde supostamente teria sido alvo de sevícias. Seguindo em sua linha e raciocínio, Adorno pontuou:

Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita [Auschwitz] é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos [...]. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experiências de cada um na escola. É preciso se opor àquele tipo de folk-ways, hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física —muitas vezes insuportável -— a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um membro do coletivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de qualquer ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora imediata da violência [...] (ADORNO, 2003).

Faz-se necessário, segundo o texto compulsado de Adorno, “...refrear esta sobrevida simultaneamente brutal e fantasmagórica desses divertimentos populares” (2003).

Se a instituição, o governo e a sociedade esperam que o policial, concluída sua formação, porte-se como autoridade, capaz de orientar-se pela prática dos direitos humanos, é preciso valorizar sua humanidade, e não desumanizá-lo. Ofender o aluno (ou a aluna) com palavras de baixo calão ou referências depreciativas à sua etnia, gênero ou origem geográfica, revela, antes de tudo, pobreza vocabular, superficialidade de argumentos ou preconceito, de parte do instrutor, o que é incompatível se considerarmos que os mais qualificados, maduros e competentes profissionais da Instituição devem estar alocados nas escolas de formação. Há escolas policiais que ainda se prendem à glamorização da ideia explorada por Adorno, de que a virilidade está associada a um “grau máximo da capacidade de suportar dor” (2003). Ainda segundo o autor referencia em seu texto, de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que — como mostrou a psicologia — se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de "ser duro" de uma tal educação significa indiferença, contra a dor em geral. No que, inclusive nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir (ADORNO, 2003). E, se a aplicação de dor física é instigada, tolerada ou presente de qualquer modo na escola, se o aluno é submetido a tratamento cruel, desumano ou degradante e isso lhe é mostrado como um favor que sua coletividade lhe faz, verdadeiro “rito de passagem”, demonstrador de sua virilidade e chave para ser aceito pelo grupo, ele por certo reproduzirá esse comportamento. Se ele aprendeu que impor dor física possa ser, de alguma maneira, legitimada, parece contraditório exigir que o futuro policial não recorra a esse método para, por exemplo, impor ou instigar a imposição intencional de dor violenta ou sofrimento físico ou mental a pessoas sob sua guarda, “com objetivos tais como obter dela ou de uma terceira pessoa informação ou confissão, puni-la por um ato que tenha cometido ou se supõe tenha cometido, ou intimidá-la a ela ou a outras pessoas”5. Assim, o instrutor não pode, em nenhuma hipótese, tocar no aluno ou submetê-lo a castigo físico, tarefas improdutivas ou a treinamentos inconsequentes, que impliquem em dor, sofrimento ou risco desnecessário. Essa postura não significa, em absoluto, leniência com o instruendo. Exigir dele que supere seus próprios limites é essencial à formação, fazendo-o adquirir maior autoconfiança, superar seus próprios limites e também reconhecer que, em sua atividade cotidiana, poderá ser privado de alimento, sono ou acesso a serviços higiênicos. Mas essa privação deve, necessariamente, fazer parte do planejamento escolar (e não ser adotada por mera decisão inopinada, a bel prazer do instrutor) e cercada de todos os cuidados para assegurar que não ocorra nenhum dano à integridade física ou psicológica do aluno. A presença próxima e atenta do instrutor (e de mais de um instrutor em atividades de risco, como tiro real, combate a incêndio ou natação, por exemplo) e o cumprimento estrito dos protocolos de segurança, evitará a ocorrência de acidentes que possam ser deplorados e cujo 5 Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, artigo 5º o resultado, muitas vezes, não permitem reparação. Além disso, tudo o que não for exigido do aluno no ato de seu ingresso na escola pressupõe-se como competência ou habilidade não adquirida e lhe deve ser ensinado, de modo gradual, progressivo e seguro. É o caso de arremessar o aluno em um profundo tanque de treinamento aquático, pressupondo que saiba “se virar”, sem que antes lhe tenham sido ministrados os fundamentos da natação. Como prevenção à violência verbal, é essencial exigir dos instrutores que não desumanizem nem infantilizem seus alunos, chamando-os exclusivamente pelo nome, pelo grau hierárquico ou por sua condição genérica (“policial”), e jamais por número, por palavras de baixo calão ou apelidos que retirem dele a capacidade de determinar-se segundo seu próprio entendimento, de futura autoridade pública.
Termos como “recruta”, “bisonho” ou outros, ainda mais agressivos, desrespeitosos ou aniquiladores da personalidade do aluno, devem ser banidos das escolas de formação. Em um tempo de grande predomínio e glamourização da tecnologia, é necessário reforçar no instruendo a necessidade de fazer dela uma ferramenta, e não uma finalidade em si mesma. A postura de Adorno, no texto citado de sua autoria, é compatível com essa afirmação:

Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios —e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana — são fetichizados, porque os fins — uma vida humana digna — encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas (ADORNO, 2003).

Em um mundo que maxi valoriza bens materiais, é preciso também demonstrar aos alunos policiais que objetos não são fins em si mesmos. Objetos são inanimados e, a despeito de nossa cultura capitalista cultuar esses produtos da técnica (desvio que Marx chamou de “fetiche da mercadoria”), somente pessoas humanas, qualificadas, motivadas e inspiradas por valores éticos, serão capazes de extrair desses equipamentos a utilidade que a sociedade espera, ao confiar à polícia esses recursos materiais e tecnológicos, utilizando-os em sua plenitude, com inteligência e sem desvios. Assegurar ao aluno o respeito à legalidade e a seus direitos, exercitando a legalidade com serenidade, sem prometer, ostensiva ou veladamente, mal injusto e grave ao aluno que busque exercitar seus direitos no cotidiano escolar, é outra ferramenta importante para que o instrutor demonstre ao policial em formação que a vontade da autoridade está limitada pelos estreitos ditames da lei.
Se o instrutor mostra ao aluno que sua vontade soberana pode mais que o ordenamento jurídico (aplicação de castigos sem direito ao contraditório e sem obediência aos ritos regulamentares, por exemplo), como exigir do futuro policial que respeite os direitos das pessoas, e não se determine segundo sua vontade, no exercício do policiamento? Muitas vezes os júris não condenam os policiais pela morte de seus oponentes, pois, pelo direito positivo, a reação do policial foi legítima e proporcional. Mas em uma polícia moderna devemos ir além e nos perguntar, com toda honestidade: embora matar encontrasse amparo legal, foi necessário matar? É o desenvolvimento da ética de preservação da vida, que deve convencer o policial, e impressionar profundamente suas convicções, no sentido de sempre optar por preservar a vida, no limite do possível, mesmo quando o direito positivo admita o uso de força letal. Assim, o ensino do direito, como ciência positiva, deve ser complementado pelo ensino da deontologia, da administração e das ciências humanas, especialmente a sociologia, as ciências sociais e a antropologia, da diversidade, pois a sociedade é plena em contradições e saber navegar nesse mar revolto é que distingue os bons profissionais de polícia. O ensino deve dedicar especial atenção à proteção das vítimas, como merecedora privilegiada da atenção do policial.
Apresentar ao futuro policial a complexidade do universo psicológico e social do adolescente e do jovem adulto, suas fragilidades, sua baixa autoestima, a importância que atribui ao fato de não se sentir diminuído perante seus vizinhos e amigos é uma das missões fundamentais das escolas de polícia. Cabe aos instrutores prepará-lo para lidar com as afrontas, os desafios, a rebeldia de adolescentes e jovens adultos pobres, que se sentem invadidos a cada vez que são sequencialmente abordados pela polícia, dia após dia, embora possam simplesmente estar em “atitude suspeita”, por sua aparência modesta não se coadunar com o bairro nobre onde trabalham.
O ensino dos direitos humanos deve ser aplicado formalmente e também de maneira transversal, permeando todas as disciplinas. O reconhecimento de que é possível encontrar soluções duradouras para a segurança pública violando direitos humanos deve ser totalmente desaconselhada aos instrutores. A subcultura do desrespeito aos direitos humanos, que se manifesta por piadas, omissões, comentários jocosos ou pelo que os franceses chamam de “non dit”, ou seja, a proposital inserção de reticências em um comentário sobre o tema, ainda que em tom informal ou fora da sala e aula, deve implicar no imediato desligamento do docente dos quadros de ensino da Instituição. A assistência e orientação religiosa também são bem-vindas na instituição formadora, desde que baseadas na liberdade de expressão e crença, e em uma visão de tolerância, ética e respeito às demais denominações. Igrejas, associações, doutrinas, ideologias, sistemas filosóficos ou religiosos radicais que promovam o proselitismo ou a intolerância, advoguem a supremacia em relação a outras expressões ou promovam discriminação, ainda que velada, contra membros de outras denominações religiosas, devem ter sua ação obstada nas escolas.
Formar policiais é missão das mais nobres e assegura aos bons formadores o ingresso na imortalidade, pois seus exemplos se reproduzirão gerações após sua finitude física. Se é recompensadora, é também das mais complexas, pois as escolas policiais – e seus instrutores - têm o dever ético de inspirar grandeza e moldar a nova geração, orientando a vocação, os talentos e a inteligência dos futuros policiais a serviço da vida.

Referências Bibliográficas:

ADORNO, Theodor Wiesengrung. Educação após Auschwitz. (tradução de Wolfgang Leo Maar). 28 de Outubro de 2003. Extraído de: http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=179:educacao-apos-uschwitz&catid=11:sociologia&Itemid=22. Acesso em 01/12/2013, 13:15 h.

BENTO XVI (Papa). Silêncio e palavra: caminho de evangelização. Mensagem para o 46.º dia mundial das comunicações sociais. 20 de maio de 2012. Disponível Revista LEVS/UNESP-Marília | Ano 2013 – Edição 12- Novembro/2013 – ISSN 1983-2192 em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/messages/communications/documents/hf_ben-xvi_mes_20120124_46th-world-communications-day_po.html. Acesso em 05/11/2013, 20:00 h.

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VIEIRA, Oscar Vilhena. Políciade lei. Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, 03 de novembro de 2013, p.E3.

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